segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

QUEM GANHOU COM O MASSACRE DO PINHEIRINHO

Marrom e Guilherme Boulos escrevem texto que esclarece alguns porquês do massacre.


Há poucos meses atrás, em setembro, as manchetes dos jornais de São José dos Campos estampavam a notícia de um acordo para regularizar o bairro do Pinheirinho. Após sete anos, as 1.600 famílias dessa comunidade teriam sua situação de moradia resolvida. O secretário estadual de habitação e representantes do Ministério das Cidades vistoriaram pessoalmente a área para fechar o acordo. Houve muita festa entre os moradores.
Quatro meses depois, em 22 de janeiro, a polícia militar de São Paulo – a mando do governador e legitimada pelo Tribunal de Justiça – inicia uma operação de guerra, que terminou com o despejo da comunidade, dezenas de presos e feridos e 7 desaparecidos. Um massacre do Estado contra trabalhadores que queriam apenas o elementar direito de permanecer em suas casas. Quanto à dimensão e covardia das agressões nem é preciso insistir, pois as imagens que circularam nos jornais e na internet falam por si. A questão é: como se deu esta reviravolta?
A movimentação que levou o Pinheirinho da regularização ao despejo teve três atores principais: o Judiciário paulista, a prefeitura do município e o Governador Geraldo Alckmin. A sintonia desta orquestra macabra varreu todas as tentativas de acordo e solução negociada ao problema dos moradores.
E contou ainda com a silenciosa e discreta omissão do Governo Federal. “Em nome do pacto federativo”... Que pacto? Aquele que os tucanos e o TJ rasgaram ao desconsiderar a corajosa decisão da Justiça Federal, que impedia a desocupação? Pois é, porque havia uma decisão judicial do TRF a favor dos moradores do Pinheirinho. De fato, percebemos nossa ingenuidade em acreditar que decisões judiciais sejam cumpridas, quando favorecem os mais pobres e prejudicam gente como Naji Nahas, dono-grileiro do terreno do Pinheirinho.
Mas o que unia aqueles que trabalharam em favor do despejo? A juíza de São José, Marcia Loureiro, foi uma combatente incansável: validou e revalidou liminares, recusou-se a receber autoridades e representantes dos moradores, dentre outras proezas. Se houvesse um “Prêmio Naji Nahas” certamente seria ela a ganhadora deste ano. Tem lá os seus interesses, que infelizmente não temos provas suficientes para expô-los. Acusar sem provas? Pois é, o judiciário brasileiro é aquele em relação ao qual Paulo Maluf costuma orgulhar-se de não ter qualquer condenação. Bom bandido é aquele que não deixa rastro.
A juíza Marcia Loureiro contou com a aprovação irrestrita do presidente do TJ, desembargador Ivo Sartori, que autorizou a PM a “reprimir força policial federal que eventualmente se opusesse à ação”. Ambos pertencem ao Tribunal que está assolado de denúncias de corrupção, super-salários e sonegação fiscal por parte de vários de seus desembargadores. Que moral e legitimidade têm eles para definir o destino de famílias trabalhadoras brasileiras?
Encontraram, porém, ombro amigo no governador e no prefeito de São José, ambos do PSDB. Vale lembrar, o mesmo partido do então governador do Pará que, em 1996, ordenou o massacre de Eldorado dos Carajás. Articularam e autorizaram a operação de guerra que, na calada da noite, tomou de assalto o Pinheirinho. O que ganharam com isso? A resposta está na lista de seus financiadores de campanha, recheadas de empreiteiras, incorporadoras, especuladores imobiliários e das empresas de Naji Nahas – que, junto com Daniel Dantas, esteve na vanguarda das privatizações do governo tucano de FHC.
Assim, o que uniu os agentes que trabalharam pelo despejo do Pinheirinho foi a prestação de um valioso serviço ao capital imobiliário. Essa ocupação representava uma verdadeira pedra no sapato, não apenas de Nahas, mas dos “empreendedores” imobiliários de São José dos Campos. Está localizada numa região de expansão imobiliária, onde ainda restam muitas áreas vazias, sob um forte assédio de construtoras e incorporadoras. Ora, nem é preciso dizer que pobres morando no entorno desvalorizam os futuros empreendimentos, em especial os condomínios para alta renda.
Por isso, o despejo do Pinheirinho era uma reivindicação antiga do capital imobiliário daquela região. Permitiria não só liberar a própria área da ocupação, como também valorizar as áreas dos bairros vizinhos. E principalmente no atual momento, em que São José passa por um processo especulativo de valorização de terras inédito, por ter sido contemplado pelo “Pacote Copa-2014”, por meio do trem bala, que passará por esta cidade.
Convenhamos então que nem o governador Alckmin, nem o prefeito Cury, nem mesmo os honoráveis magistrados do TJ-SP poderiam negar um pedido tão importante de amigos tão valiosos. A presidenta Dilma, que também teve sua campanha eleitoral fartamente financiada por construtoras, nada fez para impedir. Poderia ter desapropriado o terreno, mas não o fez. As cartas estavam marcadas.
Os editoriais de grandes jornais se apressaram em condenar os invasores de terra alheia e atribuir o conflito a interesses de partidos radicais, que teriam contaminado os pobres moradores. É preciso recordar àqueles que concordam com estes argumentos que a imensa maioria das periferias urbanas brasileiras resultou de processos de ocupação.
Pela inexistência de política pública para a moradia, parte expressiva dos trabalhadores brasileiros nunca tiveram outra alternativa. Pretendem então despejar dezenas de milhões de famílias que vivem em áreas ocupadas?
Além disso, não é demais lembrar que a idéia dos “maus elementos radicais manipulando uma massa ingênua” foi o argumento preferido da ditadura militar para desqualificar os movimentos de resistência. Parte da tese conservadora de que o povo brasileiro é naturalmente pacato e resignado, só se movendo por influência externa.
Suponhamos, porém, juntamente com a Secretária de Justiça de São Paulo, Heloísa Arruda, que declarou que “a legalidade está acima dos direitos humanos”, que os “invasores” tivessem mesmo que ser despejados. Mesmo neste cenário, a questão poderia ter sido conduzida de forma muito diferente.
Basta tomarmos um exemplo recente, que ocorreu em Taboão da Serra, município da região metropolitana de São Paulo. No início de 2011, foi determinado o despejo de uma área ocupada por 900 famílias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Encarregado de fazer a desocupação, o Coronel Adilson Paes exigiu simplesmente que a lei fosse cumprida para os dois lados: exigiu do Poder Público a garantia de um local de alojamento para as famílias despejadas, bem como todos os meios necessários para o tratamento humano daquelas pessoas.
Logo após, por algum motivo obscuro, o Coronel Adilson foi afastado do comando do batalhão. Mesmo assim, sua postura foi suficiente para permitir que houvesse uma solução pacífica e negociada neste caso. Não estranharemos se o Coronel Messias, que comandou com mão de ferro e uma boa dose de sadismo, a operação de guerra do Pinheirinho receber – não um afastamento – mas alguma medalha ou promoção ao Comando Geral da polícia militar. É assim que as coisas funcionam.
É triste constatar que o que ocorreu no Pinheirinho não foi um fato isolado. Trata-se de expressão de uma política, conduzida pela especulação imobiliária e seus amigos no Estado, que coloca a valorização das terras e os lucros com os empreendimentos bem acima da vida humana. Este processo, aliás, tem se tornado cada vez mais cruel com as obras da Copa do Mundo 2014. Infelizmente, outros Pinheirinhos virão.
Guilherme Boulos, membro da coordenação nacional do MTST, militante da Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos e da CSP Conlutas.
Valdir Martins (Marrom), liderança da comunidade do Pinheirinho (MUST), militante da Resistência Urbana – Frente Nacional de Movimentos e da CSP Conlutas.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Matéria da Carta Capital sobre a barbárie cometida pelo governo do estado contra os moradores do Pinheirinho

‘Não deu tempo de pegar nada’, conta moradora

Por Felipe Milanez e Maíra Kubík Mano

"Não deu tempo de pegar nada. Eles disseram: deixa tudo aí, depois vai voltar para buscar. Peguei o que deu", relata moradora
O dia começou cedo no último domingo, 22 de janeiro, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Depois de chuva forte, havia muita lama por toda a área do Pinheirinho. Às 5 horas da manhã, todos estavam recolhidos em casa, relativamente mais calmos depois que a ordem de despejo, imaginavam, havia sido suspensa.
Janaína (que pede para não ter o sobrenome citado), seu marido e filhos dormiam. Então veio o estrondo, seguido por sons diversos, despertando as famílias que vivem na área para um pesadelo.
Ela conta, com um olhar distante e um semblante tranquilo, algumas horas mais tarde, o que aconteceu nessa madrugada: “A maioria estava dormindo quando eles entraram. Eu acordei com o barulho do helicóptero. Abri o portão e meu vizinho estava gritando. Eles já estavam quebrando. Não tinha como ficar. Eles entraram em casa atirando. É uma covardia o que eles estão fazendo”.
Um susto. Porta arrombada. Gás. Na rua, caos, correria. Barulhos de tiros. Gritos. Todos saindo de casa atordoados.
“A gente sabia ali que a qualquer hora podia vir a polícia pra cima”. Mas foram pegos de surpresa.
“Sai de casa, sai, sai”, gritou um policial para uma senhora. Ela ainda estava assustada no início da tarde. “Não deu tempo de pegar nada. Eles disseram: deixa tudo aí, depois vai voltar para buscar. Peguei o que deu”.
"Peguei o que deu", diz morador. Foto: Maíra Kubík Mano
“Peguei o que deu” foi uma expressão corrente. Adrian pegou as galinhas e a mãe. Teve gente que pegou o filho, o bebê. Algum carrinho de mão com um amontoado de objetos. Outros conseguiram jogar uns poucos bens, como aparelho de som e televisão, no porta-malas de carros. Cães. Os bichos deveriam vir junto impreterivelmente. Alguns, saindo do susto, aparentemente mais calmos, acreditaram nas palavras dos policiais e que a senha de papel que receberam daria direito a ir e ver, logo em seguida, a casa intacta para retirar o que quiser.
Janaína ficou confusa quando percebeu que tinha medo da polícia. “Na realidade, a gente tem eles para proteger a gente. Mas nesse caso, eles estão protegendo ninguém.” Uma senhora disse, com ar meio irônico: “liguei para o 190 para chamar a polícia!”
A confusão em torno do papel da polícia (medo ou confiança?), para a moradora do Pinheirinho, tem origem na Justiça.
“A juíza mandou e aproveitaram hoje, domingo, porque a liminar federal vai para ela amanhã (segunda-feira). Agora a maioria do povo vai para alojamento. Ainda tem bastante gente lá dentro. Não querem deixar as pessoas saírem nem entrarem”, conta Janaína, nessa tarde longa de um dia de medo e tensão.
Troa de choque durante a desocupação. Foto: Felipe Milanez
Ela mora há 8 anos na ocupação, desde seu início. E segue: “À noite vai ser pior, vão quebrar tudo. Já tem trator lá, mas não sabemos se derrubaram as casas. Eu não tirei nada, só estou com a roupa do corpo. Eu tirei meus filhos de manhã cedo e meu marido ficou. Ele saiu depois e só pegou alguns documentos. O resto ficou para trás: móveis, eletrodomésticos tudo. Meus filhos estão todos sem roupa”, afirma, apontando para uma menina descalça.
A reintegração de posse foi autorizada pela juíza da 6ª Vara Cível de São José, Márcia Mathey Loureiro. “Se ela aparecer aqui vai ser linchada ou morta”, vocifera Ivonete, empregada doméstica e mãe de três filhos. “Eu tenho que batalhar para sobreviver. Meu marido está preso e eu nem tenho dinheiro para ir visitar ele. Tudo vai para as crianças”.
A entrevista é interrompida por três vezes. Ivonete se perde e é reencontrada em instantes em meio à correria das balas e bombas.
Cheiro de fumaça, cheiro de borracha queimada, marcas pretas no chão. “Parece Bagdá”, comenta um amigo. “Faixa de gaza”, diz um jovem. “Palestina!”, gritou outro, numa roda de papo falando sobre o que está acontecendo.
Carros incendiados nas ruas de acesso avisam, a quem possa interessar, qual é a real situação. Mais perto, tudo fica pior. Tensão era tão visível no ar que ele estava pesado – talvez pelo cheiro de tanta fumaça misturada.
Tumulto. Gente caminhando para todos os lados. Desnorteados, às vezes, como zumbis pobres carregando sacolas, botijões, coisas em carrinhos de bebês, bebês nos colos.
Um helicóptero na cabeça intimida qualquer um. Mais tarde, veio outro, mais amedrontador. Deles saiam bombas de gás químico, insuportáveis ao nariz e olhos. Pendurado para fora da aeronave, o atirador de elite aponta sua metralhadora indiscriminadamente. Isso cria um pânico no chão. O barulho das hélices voando baixo permanece durante todo o dia, ora mais forte, ora mais distante.
Moradores montam barricada perto de casa. Foto: Felipe Milanez
Estratégia de terror psicológico. Cerco. Estão na frente, estão atrás, estão do lado, estão por cima. Polícia por todos os lados. Cercados. Não há para onde fugir, e mesmo assim, agridem.
“Foi a maior guerra aqui de manhã. Os guardas municipais atiraram com bala de verdade. Foi feio”, comenta Maria, que mora próxima à entrada do Pinheirinho e tem amigos lá dentro. “Tinha muita gente machucada. A escola foi queimada, o povo está revoltado. A polícia entra atirando, como se a gente fosse cachorro. Ninguém é cachorro aqui”.
“E não temos notícia lá de dentro. A gente só vai saber mesmo o que aconteceu lá dentro depois que o Choque sair daqui. Aí a gente vai ver o prejuízo”, complementa uma vizinha.
“Lá dentro”, como chamam a área cercada pela PM, ninguém entra.
Capitão Antero, do setor de comunicação, responsável pelo atendimento da imprensa, tenta ser simpático e convincente. Chove um pouco, os jornalistas são minguados nessa tarde, circulando como os moradores, de lado pra lado, desnorteados. Como a polícia também.
“Preparamos a escola para receber vocês”, ele avisa, como um hostess de um clube. “Tem computador, lugar para descansar. Mas esta sala está sem energia. Podem circular à vontade por aqui”.
Helicóptero da PM foi usado na operação. Foto: Felipe Milanez
E passa a falar da organização da operação, do planejamento exato que diz ter sido feito, de como a PM não agiu com violência alguma, “o ferido foi em um confronto com a GCM (a Guarda Civil Municipal)”.
Ao que importa: o que está acontecendo “lá dentro”? É possível entrarmos?
A resposta: “nem acompanhado da polícia. Lá dentro ninguém entra. Onde está ocorrendo a ação não pode entrar. pois não podemos garantir a segurança.”
Quanto mais perto da entrada do Pinheirinho, mais gente se aglomera.
Uns eram curiosos do bairro, excitados com toda aquela movimentação. Outros, moradores da região que achavam a reintegração absurda, assim como a ocupação militar na porta de suas casa.
E havia, claro, centenas de pessoas recém-despejadas. A área tinha cerca de 1.600 famílias. Todo mundo deveria sair imediatamente, deixando tudo o que tem em casa, para ter então a sua situação reconhecida pelas autoridades num processo que a polícia militar estava chamando, quando perguntada, de “recadastramento”.
Janaína e Maria estão paradas em frente ao terreno onde a Prefeitura de São José dos Campos coloca os desabrigados. Observam tudo o que acontece. Maria está com o celular na mão, gravando vídeos e tirando fotos. Mostra imagens do carro da TV Vanguarda pegando fogo e de um policial empunhando uma arma contra ela e dizendo que não ela não podia filmar.
Policiais se armam contra moradores. Foto: Felipe Milanez
Começa uma correria dentro do alojamento. Depois de uma conversa rápida com um advogado do Pinheirinho, os moradores decidem derrubar parte da cerca dessa área onde estavam confinados pela Prefeitura. O lugar mais parece um campo de concentração do que de refugiados. Tudo vigiado pela Guarda Civil Metropolitana que manteve, ao longo de todo o dia, cenas de confronto quase ininterrupto com a população que era obrigada a entrar, pela PM, nesse reduto. Era algo como: se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come. Bicho mau, no caso a GCM, que foi ainda mais truculenta com os moradores.
Funcionários do município que colocavam arames farpados nas grades do terreno são surpreendidos por um grupo de 20 pessoas. Com algum esforço, um pedaço da cerca verde vai ao chão. Bombas de gás estouram naquela direção e ouve-se o barulho de tiros. Dois carros da polícia cantam pneus na rua do lado para afastar os moradores do bairro. Um militante do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Guilherme Boulos, é espancado pela polícia e levado preso. Horas depois, soube-se que ele recebeu cuidados médicos algemado.
Vem à mente a frase do capitão Antero: “ferido? só em um confronto com a GCM”. Bastava andar pelas ruas para ver pessoas mancando com faixas, como um senhor de setenta anos, todo machucado, ou jovens que mostravam as marcas de balas no corpo como tatuagens, ou Reinal Ferraz da Cunha, que levanta a calça para quem quiser ver a marca de bala de borracha em sua perna esquerda. “Foi à queima-roupa”.
O movimento diminui e a situação parece ficar novamente calma, mas tensa.
As tendas da praça são brancas, como aquelas utilizadas em raves e em shows de música, em festivais.
As placas eram simpáticas como se fossem para receber convidados. São parte do “planejamento minucioso da operação” mencionado pelo capitão Antenor – que fez questão de ressaltar que “a polícia Militar não faz atendimento social”.
Faixas brancas com escritos azuis na entrada. A primeira delas dizia, de forma convidativa: “recepção.” Nas cadeiras apenas alguns moradores, nenhum funcionário.
Depois, como no parque temático, seguiam os dizeres de diversos serviços do Estado, aos quais os moradores do Pinheirinho não tinham acesso onde viviam: “Conselho Tutelar”; “Atendimento Social” (que “não é serviço da PM”, fez questão de ressaltar o capitão); “Alimentação”; “Alojamento”.
Mais um espaço com muitos computadores desligados, estes que serviriam para fazer o cadastramento da população. Quem planejou a operação, aparentemente, sabia como receber convidados em um grande evento. Não contava, no entanto, com a dura realidade da situação.
Ronaldo está na fila para passar pelo processo de triagem. “Triagem? Que diabos é isso? Só ouvi falar em trilhos lá em Minas Gerais”, balbucia.
“Eu construí uma casa de cinco cômodos no Pinheirinho e agora querem me mandar para tendas. Eu não sou índio para morar em tendas!”
Josias, pedreiro, já foi registrado no cadastro da Prefeitura. “Eles deram essa numeração aqui”, aponta para uma etiqueta colada no peito. “Disseram para tirarmos só os pertences de roupas, documentos. Nem no Rio de Janeiro, que tem traficantes perigosos, foi esse confronto todo. Aqui só tem gente humilde, trabalhadora”, reclama.
Guarda Civil dá as boas vindas à população. Foto: Felipe Milanez
“Saímos do Pinheirinho às 4 horas da manhã. Já é de tarde e nem deram comida para a gente. Daqui a pouco a maioria de nós vai perder o emprego. Nem as nossas coisas querem que tirem. Amanhã, quando eu chegar na firma, eles não querem saber dos meus problemas. Se eu não aparecer, mandam embora. Todo mundo tá sem teto aqui”.
Em seguida, pães franceses – sem mortadela, manteiga ou algo do gênero – são distribuídos para mãos desesperadas.
Edvaldo, ao seu lado, está nervoso. “Aqui não é favela, é um bairro. Nós queremos que legalizem o terreno. Nós queremos construir as casas do nosso próprio bolso, não precisa dar nada”.
“Chegaram às 4 horas da manhã jogando bomba de gás. Já mataram gente, tem um aleijado. A Guarda Municipal deu três tiros num moleque. Eu vi”, diz Josias. Nenhuma morte foi confirmada até agora, mas muitos boatos e depoimentos correm soltos, inclusive de uma criança pequena que teria falecido intoxicada com o gás lacrimogênio – algo que seria plenamente factível pelas cenas que presenciamos.
“Já tem mortos lá dentro. Eu não vi, mas todo mundo está falando. Tem um que está no hospital, acordou agora. A mãe dele me disse que ele pode ficar paralítico. Não podia ter entrado com bala de verdade, mas todo mundo está usando elas”, afirma Janaína.
Pouco depois, quando a luz do fim do dia começa a se apagar, tem início um novo tumulto assim que um trator acelera em direção à ocupação.
Os moradores tiveram a certeza de que suas casas seriam derrubadas. Havia um cordão de policiais ao longo de uma corda azul de nylon. “Não pode passar da corda”, gritou uma policial quando passamos, quase sem perceber, em direção ao Pinheirinho.
O motor do trator é barulhento. Atravessando essa avenida com um canteiro no meio, estava a praça na qual os moradores estavam reclusos, nas tais tendas.
Trator é usado para 'limpar' o terreno após desocupação. Foto: Felipe Milanez
O trator avança e a PM mantêm-se burocraticamente calma. Mas a notícia começa a se espalhar dentro da praça. E os moradores, assustados, a correr. Gritos. Xingamentos da PM. Ao lado dos policias, dois jornalistas vestem coletes a prova de bala da cor azul-claro (ou, o popular azul-calcinha). São da afiliada da Globo e foram os únicos autorizados a entrar dentro da área do Pinheirinho (uma exceção à regra da “imprensa não entra” emitida pelo Capitão Antero).
Pedras. Mais xingamentos. Surpresa. Gritos agudos de mulheres em prantos: “minhas coisas”. “Filhas da puta”. “Filma isso” e “fala a verdade aí, o Globo”.
Desesperados, e atrás das grades altas, verdes, os moradores temiam ser passados para trás mais uma vez. Os papéis que haviam recebido para, depois do confronto, retornar às suas casas e retirar seus pertences, não serviriam para nada. Enfeitariam o chão das ruas, voando com o vento dos carros da polícia que passavam correndo a alta velocidade e cantando pneus para assustar aos moradores.
Os escudos foram armados. Passaram informação no rádio e um pelotão veio caminhando em passo firme pela rua que faz a divisa com o Pinherinho. Passo militar. Foi cômico quando o primeiro da fila parou e levantou a mão, e os últimos, sem prestar a atenção, olhando para as pedras e os xingamentos, juntaram-se a ponto de tropeçar nos parceiros da fila.
Alguns carregavam granadas de gás na mão. Foi dada a ordem para preparar. E avançaram em direção à grade e pela rua. Muitos tiros e bombas são lançados para a praça. Alguns policiais, mais atrevidos e nervosos, correram até a grade, aos gritos: “O Pinheirinho agora é nosso”, disse um, sem identificação, atirando. Apontava a arma reta, na altura do ombro.
Nas tendas agora enfestadas de fumaça tóxica também estavam mulheres, crianças, famílias. Todas deitadas, pensando ser ali o alojamento. A GCM se somou à PM e respondia com tiros e mais bombas em direção aos manifestantes, recuados numa ponta. Atacados dois lados, eles não sabiam mais para onde correr. Gritos, muitos gritos de desespero.
Na rua, todos entram na primeira casa que viam com o portão aberto. A polícia segue avançando em paralelo à grade. Muita fumaça. Tanta fumaça que o pelotão, em mais uma cena de comédia e tragédia, passava pelo meio da fumaça que haviam provocado para assustar os moradores e terminava com os próprios olhos ardendo. Dava para ver os policiais lacrimejando – como nós, ali do lado.
Mas mesmo com os olhos inflamados, sem máscara e com a visão prejudicada, eles não paravam de atirar. Claramente assustados, tentavam assustar ainda mais os moradores.
'Não houve violência', garante a polícia. Foto: Maíra Kubík Mano
Os boatos continuavam a circular. Duas moradoras mostram os números que haviam ganhado num papel. Outra, uma pulseira azul, utilizada por várias senhoras. A pulseira servira para marcar os moradores legítimos do Pinheirinho que teriam direito a um alojamento. E os números distribuídos seriam o direito ao retorno a suas casas para recolher os bens. Assim pensavam as entrevistadas. Nova decepção veio quando surgiu a possibilidade de que seus bens seriam enviados para a cidade de Osasco. Será que nunca mais ninguém ali veria a sua casa? O jardim, o colchão. A pia da cozinha. A horta. A rua. A janela. O quarto. Onde dormir naquele domingo? “Nesse alojamento onde eles jogaram bomba agora? Eu é que não vou dormir aí. Prefiro dormir na rua”, disse uma moradora. “Eu é que não fico aí com as crianças”, garante Janaína.
Um jovem magro, cabelo descolorido, camisa sem manga, chega junto para puxar conversa. Dar uma real. Olha a fumaça. “Tá ouvindo os grito das muié?”, pergunta. “Vou dizer uma coisa pro senhor: eu sou bandido. Sou mesmo, não nego. Mas esses daí”, aponta para a polícia, “esses daí são cruel. O que eles tão fazendo com as mulher e as crianças nóis num faz não.”
Nesse momento, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em última instância o responsável pelas ações da Polícia Militar, posta em seu twitter um “feliz ano novo” chinês.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Governador Alckmin e prefeito Cury (PSDB) descumprem ordem judicial e invadem o Pinheirinho




Juíza de São José desrespeita ordem superior e determina a reintegração de posse

Duas pessoas morrem na operação da Polícia

A Polícia Militar desatou uma operação de guerra contra os moradores da Ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos (SP).

Por determinação do Governador Geraldo Alckmin (PSDB), dois mil homens da PM invadiram a Ocupação Pinheirinho na madrugada, apesar da reintegração de posse estar suspensa por decisão da Justiça Federal.

Os moradores foram brutalmente atacados, muita gente foi ferida e dezenas de moradores foram presos.

Temos notícia de que  pelo menos duas pessoas mortas no ataque da Polícia, uma delas um jovem que passava nas proximidades da ocupação.

Numa verdadeira carnificina, como numa operação de guerra, foram utilizados ainda efetivos da ROTA, da tropa de choque, da guarda municipal e dois helicópteros ÁGUIA na ação da Polícia.

A população resiste e há conflitos ainda nos bairros próximos ao Pinheirinho.

Manifestantes contrários à desocupação do Pinheirinho ocuparam a Rodovia Presidente Dutra, no km 154, sentido SP-Rio, em São José dos Campos (em frente à Johnson & Johnson). Cerca de 300 pessoas participam da manifestação. O trânsito permanece fechado.

O advogado dos moradores, Toninho Ferreira, nos relata que a “a ação da Polícia é completamente irregular, uma ação covarde, pois a reintegração foi suspensa na sexta-feira (20)pela Justiça. Um oficial de Justiça compareceu aqui e foi solenemente ignorado pelos oficiais do comando da PM”.

A responsabilidade da ação, portanto, é do governador Geraldo Alckmin, do PSDB.

Na verdade, os 2.000 homens armados que promovem a desocupação, estão a serviço dos especuladores imobiliários e do prefeito Cury, que governa para os ricos e poderosos, que chegou a dizer que a desocupação era necessária porque o terreno é muito valorizado e não é lugar de pobre morar.

O membro da CSP-Conlutas,  Zé Maria,  se encontra no local e relatou os abusos da desocupação. “A ação da Polícia, na verdade de um bando armado a serviço do capital imobiliário, está sendo feita num domingo, em desrespeito a uma decisão da Justiça federal e não poderia ser executada. Esse precedente é muito grave, pois não vamos aceitar que o direito a moradia seja desrespeitado, ainda mais quando amparado por uma decisão, mesmo que provisória, da Justiça”, ressaltou.

Para a CSP Conlutas a ação da polícia, em conluio com os governos estadual e municipal, demonstra, mais uma vez, os compromissos dos governos do PSDB com a burguesia desse país. Sequer o Poder Judiciário foi respeitado pelo governador, a quem cabe a decisão numa operação dessa envergadura.

A resistência dos moradores é, portanto, legal e legítima.

O Governo Federal declarou seu interesse em resolver o conflito pacificamente.

A desapropriação do terreno pelo Ministério das Cidades é a medida necessária para que o direito à moradia seja assegurado à população do Pinheirinho.

O governo Alckmin e a juíza que manteve a desocupação, mesmo com uma liminar  impedindo a execução da ordem de despejo, são os responsáveis pelas duas mortes e pelas centenas de pessoas feridas nesse verdadeiro massacre promovido pelas forças repressoras do estado.